O Ao Redor publica hoje um conto de Artur Azevedo, poeta, contista, jornalista e dramaturgo maranhense, nascido em 1855, que nos deixou vasta obra literária e outros legados culturais.
Plebiscito, de Artur Azevedo
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço.
Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervêm:
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito?
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário, acudiu o senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças?
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergueu-se de um ímpeto e brada:
— Mas eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo, observa dona Bernardina, e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito.
— Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão: pois sim, mamãe, chame papai e façam as pazes.
— Sim! sim! façam as pazes! diz a menina em tom meigo e suplicante. Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se: não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a sala, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio; é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelos povos romanos, estabelecido em comícios.
— Ah! suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo.
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