Numa esquina turva e sombria, um vulto apareceu e arrancou-lhe a vida como se não fosse nada. Sem exigência ou explicação, fincou com determinação a lâmina gelada em sua barriga. Nenhuma palavra dita. Apenas o ato e a fuga.
Arremessou a faca suja de sangue no chão e desapareceu sem deixar vestígio. Sequer assistiu o corpo tombando no asfalto. A vítima carregava um embrulho, que rolou para perto do bueiro e se abriu.
O ferimento ardia, como se estivesse em chamas. Observou as estrelas e teve a impressão de vê-las aos prantos. Lágrimas rasgando o céu. Foi quando avistou sua mulher se aproximar. Não poderia precisar se esse aparecimento era fruto de um delírio ou um presente de Deus.
— O que fizeram com você? — questionou a ele, a si mesma e a algum ente superior que não foi capaz de protegê-lo.
As lágrimas rolavam como a correnteza volumosa de um rio em dias de tempestade. A força da enxurrada devastando a plantação de sonhos e planos que levaram uma década para construir. Tudo arruinado de repente.
Talvez se ele não tivesse entrado na loja de brinquedos após o expediente naquela tarde. Se escolhesse a primeira opção que encontrou na prateleira e não ter procurado mais. Se deixasse de conferir o troco ou ter aguardado o ônibus passar. Uma pluralidade de “se” que conduzem o nosso destino a um único fim. Jamais saberemos o que teria sido com a exclusão de um deles. Talvez o resultado fosse o mesmo. Ou pode ser que mudasse tudo.
Ela faria o que fosse preciso para escrever a história de forma diferente. Buscaria de forma incansável final distinto. A perda de alguém que estimamos é uma tortura difícil de suportar.
Procuraria eternamente a resposta para a pergunta que lhe martelaria a mente em toda sua existência. Por quê? Desejava obtê-la, mesmo sem ter certeza se lhe traria algum conforto.
O que leva alguém a cometer uma atrocidade tão grande com um desconhecido sem razão? Ela jamais descobriria, assim como a polícia também não pegaria o autor do delito. Um assassino sem rosto. Odiar uma pessoa que não se sabe a identidade é como desprezar uma ideia abstrata. Mas o sentimento em seu peito era real e muito bem direcionado. Impossível cogitar em perdoá-lo.
Um feixe de luz evaporou da boca do marido naquela esquina. A pele esbranquiçada e o olhar se perdendo aos poucos. A dor da ferida dando espaço a um momento de contemplação, na última troca de carícia entre eles.
— Eu te amo — confessaram concomitantes, em um segundo repleto de afeto e agonia.
Ele reparou a imagem de momentos inexistentes passando pela íris da mulher. Instantes passados e futuros. Detalhes que deixou escapar e os que lhe impediram de vivenciar. Quando o último fio de vida se esvai, somos invadidos por uma onda de saudade daquilo que não vivemos.
Enquanto isso, ela tentava reunir os cacos para seguir em frente. O sobrevivente não sobrevive. Ela também foi assassinada. Uma morte silenciosa e sofrida. Mataram-na por dentro, sem piedade.
— Tive a certeza de que morri quando me vi no reflexo dos olhos abertos do cadáver do meu marido — relatava em um grupo de apoio.
Naquela fatídica noite, aguardava-o em casa ansiosa para lhe dar uma linda notícia. Em companhia do filho de 4 anos, emocionou-se após o teste de gravidez indicar que teriam mais um.
Sem conseguir se conter, vestiu seu melhor vestido e maquiou-se. Pretendia estar deslumbrante ao revelar a novidade.
— Vem comigo — chamou o garoto, que atendeu o pedido de prontidão. — Vamos fazer uma surpresa e encontrá-lo no caminho.
Saíram de casa e caminharam de mãos dadas, enquanto ele lhe revelava o que queria ser quando crescer.
— Vou ser igual ao papai — batia no peito orgulhoso.
Um sujeito correndo esbarrou nos dois e quase os desequilibraram.
— Ei — esbravejou contrariada. — Olha por onde anda.
Não enxergou nada além de um casaco acinzentado com o capuz dançando ao vento. Somente isso. Avistou-o de relance e logo desviou o foco para o filho, assustado com o esbarrão.
Quando suspendeu o rosto novamente, só deu para ouvir o grito do marido na esquina. Correu em sua direção desesperada e debruçou-se sobre seu corpo. Um adeus prematuro e estúpido. Não teve nem tempo de lhe contar as boas novas. A espera no ventre que ele não pôde acompanhar. A menina que sempre sonhou. A princesinha que precisaria se virar sem a presença de um rei lhe resguardando.
O filho pequeno se aproximou sorrateiro. Confuso e apavorado. Avistou seu herói caído, sem poder se levantar. O exemplo da vida resumido na morte.
O embrulho que trazia nos braços rolou para perto do bueiro e se abriu diante dos pés do menino. O ursinho de pelúcia felpudo lhe acenando feliz. Um contraste eterno abraçando seu peito.
Autoria de Cadu Mohrstedt
Sobre o autor
Cadu Mohrstedt, 30 anos, petropolitano. Formado em Direito e em Jornalismo. Cursando pós-graduação em Escrita Criativa. Realizou curso de roteiro na Academia Internacional de Cinema. Autor de dois livros de poemas autopublicados. Premiado em concursos de poesia, trova e conto.
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