Acordou e deu de cara com o enorme dragão na cozinha. Eram quase seis. O café. O marido. Fechou a porta e viu que não tinha a chave. Nunca lhe ocorreu que precisaria trancar a cozinha, nem sabia onde guardavam a chave.
As mãos maquinavam. Geladeira, fruteira, despensa, armários modulados. A cabeça rodando. Pão, frutas, pratos, talheres, copos, xícaras, o quê mais? Ela se esgueirava pela cozinha feito um rato, enquanto o dragão dormia, bem no meio. O quê mais? O jogo americano. Lembrou o marido falando que é mais higiênico comer com jogo americano.
Por ela, não punha nada, nem prato. A mesa quadrada de plástico imitando granito até brilhava. Era só passar pano e pronto. O jogo americano de tecido metido a besta, vivia sujo de geleia, suco, café, e ela tinha que esfregar, dependendo da mancha deixar de molho, esperar, lavar, pendurar, esperar secar.
Um arrepio quente e ela se virou. O dragão acordou. Estava ali, baforando no seu cangote, enquanto ela matutava. Shiu, quieto! Ergueu a mão quando ele ameaçou se levantar. Se não vai derrubar tudo. Ele bufou, a fumaça que saiu do seu nariz embaçou a janela e os copos na mesa. Era só o que me faltava, esse bicho cuspir fogo e derreter minha mesa.
Ele pôs a língua pra fora, mostrando os dentes. Ela não recuou. Qui-e-to, repetiu. Sentia o corpo tão quente e grande quanto o dele. O dragão serpenteou a língua pelo focinho e assentou. Assim, o pescoço volteado e a cabeça deitada entre as patas dobradas, parecia um cão dócil descansando no chão da cozinha, esperando as sobras. Ela acendeu o fogão e colocou a água no bule.
Quando o ovo apareceu, não parecia tão diferente. Quer dizer, sabia que não era de galinha, mas achou que podia ser outra ave, vai que era uma iguaria, uma surpresa trazida pelo marido. Ovo de pato, ganso, avestruz, não sabia. Guardou em cima da geladeira e esperou. Mas ele nunca falou sobre o ovo. E nem ela.
Dias depois, ela assava um bolo quando escutou um barulho. Parecia madeira quando se contorce no fogo. Aquilo lhe deu um calafrio. Lembrou do ovo e quando tentou pegá-lo viu que ele ardia e pulsava. Largou no chão e ele se quebrou.
Que bicho horrível. Correu e fechou a porta da cozinha. O bolo. Voltou desviando o olhar daquele ser esquálido que tentava apoiar o corpinho com suas magras asas, tombando desajeitado.
O bolo ainda estava cru. O gás tinha acabado. Xô! Xô! O monstrinho tinha saltado para perto dela dando cusparadas de fogo. Ela pegou a vassoura e perseguiu o filhote que saltava em gemidos agudos, chamuscando a cozinha com suas labaredas.
Que barulho é esse? Gritou o marido da sala. Não é nada, respondeu. E quando se voltou para as vassouradas o animal tinha sumido. E o bolo, que estava cru, agora também tinha queimado.
Volta e meia, aparecia um copo quebrado que o marido perguntava se foi ela e ela dizia que não lembrava. A comida também parecia acabar mais rápido. E quando lavava a cozinha, ela esfregava sem pensar muito as marcas estranhas no chão. E desde então, não conseguia mais assar um bolo no ponto certo.
Até que um dia, deu de cara com o animal empoleirado na cadeira. O bicho tinha crescido e não tinha cara de pássaro nenhum. Tinha focinho, dente, rabo cumprido com uns espinhos. A cara era feia. Lembrava as estátuas na torre de uma igreja que o marido tirou foto, quando viajou pra fora. Antes de casarem ele dizia que iam viajar juntos para fora, mas agora, vivia ocupado.
Coisa do demo. Xô! O bicho medonho só podia ser a besta-fera. Xô! Ele olhava pra ela e nem se mexia. A mulher pegou a faca no escorredor e avançou. Vai embora de uma vez! Gritou e ele abriu asas enormes. Derrubou tudo ao redor e ficou suspenso no ar por poucos segundos antes de saltar pela janela e voar acima do prédio vizinho, acima da nuvem, acima do céu.
De longe, era como um pássaro com um rabo imenso. Ela olhava da janela, o dragão com suas escamas brilhando ao sol. Sumindo no alto. Ponto de luz. Até desaparecer. Era um dia bonito, aquele. Num tempo em que geralmente chovia.
Naquele dia, ela não conseguiu dormir. Mesmo depois de ter passado o dia limpando o estrago da decolagem do bicho na cozinha, ficou imaginando se ele teria partido de vez. E para onde.
Mas a vida se conforma no hábito. E ela se acostumou com a comida sobrando, as manchas de sempre e os copos inteiros. Só que a vida se deforma de súbito. E como ele voltou, como ficou tão grande e o que ia fazer dessa vez, ela não sabia.
Tem alguma coisa queimando. O marido. A água. A porta. Nem viu ele abrir. O dragão. E ela. Eu posso explicar e ele desligando o fogo, pegando o pão. Não tenho tempo. Mergulhou o pedaço na geleia e abocanhou. E o café, perguntou com a boca cheia, as migalhas caindo na mesa. Desculpe, a boca maquinava. E na cabeça outra resposta gritava. Outra mordida e a geleia escorreu pingando no jogo americano. A cabeça gritava. Volto mais tarde, ele disse, saindo.
O dragão não se moveu. Nem ela. Talvez, sua boca-máquina tenha dito tchau, mais tarde faço um bolo. A cabeça gritava. O dragão olhava no seu olho.
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Vizinhos disseram que foi vazamento de gás e, que sorte, não tinha ninguém em casa. A seguradora alega falha humana. Mas a grande dúvida é sobre como ela saiu. O porteiro, o zelador, os vizinhos, ninguém viu. O marido não sabia explicar por que ela não voltou e nem levou seus pertences.
Tempos depois, com a cozinha refeita, ele acionou a polícia para dizer que a mulher estava louca. Acredito que não notei, pois trabalho muito, sou um homem bem ocupado. Como prova, ele levou o bilhete que encontrou na nova geladeira. Não tinha assinatura, mas ele jura que é da mulher. Dizia apenas: “dragões não foram feitos para assar bolos”.
Autoria de Andressa Hazboun
Sobre a autora
Psicóloga, dramaturga, palhaça, mãe, cantora. Não necessariamente nessa ordem.
Instagram: @ahazboun
Conto eletrizante. Pude ver, ouvir e cheirar o dragão!