Tanto na escrita da dança quanto na escrita da Libras, a escrita do movimento contribui para a preservação de memórias culturais, já que permite que uma manifestação espaço-visual seja fixada.
Pensar a escrita do movimento é pensar a preservação do movimento para além do limite temporal e espacial ao qual está inicialmente vinculado. O movimento expressa e comunica, e compreender suas dimensões expressivas e comunicativas leva à concepção do movimento como linguagem, o que faz refletir sobre a necessidade de seu registro.
Essas considerações trazem à tona a necessidade de perpetuação das manifestações espaço-visuais como fundamentais na ampliação e preservação da memória cultural. O ser humano é naturalmente comunicativo, a comunicação faz parte de sua natureza social. Existem muitas formas de comunicação, sejam elas verbais, corporais, ou através de quaisquer outros códigos criados pelo homem com essa finalidade, dos quais temos diversos exemplos ao longo da história, como o código Morse, por exemplo. No entanto, a linguagem escrita guarda uma particularidade que a diferencia de outras: a possibilidade de perpetuar o que se comunica, de registrar e transmitir para além do tempo e do espaço o conteúdo comunicado. Claro que existem outras formas de registro e que esse campo se ampliou com o desenvolvimento tecnológico, especialmente a partir dos séculos XIX e XX. Hoje o repertório que pode ser fixado em algum tipo de suporte é altamente diversificado. Guardam-se para a posterioridade, sons, imagens, até mesmo movimentos da terra (sismos) que podem ser registrados através de sismógrafos. Todos esses registros são possíveis, pois foram desenvolvidas tecnologias para cada caso.
A escrita, porém, talvez seja a mais significativa das tecnologias de comunicação, registro e transmissão de conhecimento. Sem a escrita, a comunicação e a transmissão de saberes e de toda a história da humanidade seriam basicamente dependentes da tradição oral, que é extremamente importante, mas que não pode dar conta de todas as manifestações, além de estar suscetível a perdas e alterações durante seu processo de transmissão.
Observe-se que já temos, de forma totalmente organizada, tecnologias para o registro da linguagem oral (através da escrita alfabética), para o registro das expressões musicais (através da notação musical) e para o registro de expressões visuais estáticas (pelo desenho, pela cartografia, etc.). Pode-se, portanto, nesse contexto, reivindicar a importância do desenvolvimento da escrita do movimento. Tal tecnologia já existe, mas ainda carece de aprofundamento e, principalmente, difusão. Sem ela, a única forma de registrar os movimentos é através da produção de vídeos. Formas de escrita do movimento foram desenvolvidas a partir de dois contextos culturais: os registros da dança e a transcrição da língua de sinais.
A escrita da dança e a transcrição da língua de sinais
Fig. imagem de notação das posições dos braços do ballet retirada do Tratado de Feuillet (1700). Fonte: CASTRO, Caroline Konzen. Métodos do Balé Clássico: história e consolidação (2015).
As primeiras tentativas de elaboração de um sistema de notação de movimento ocorreram na época de Luís XIV, na França, por Raoul Feuillet e Pierre Beauchamp. Ao longo da história outros métodos de notação do movimento foram desenvolvidos, dentre os quais se consagraram principalmente: o Labanotation e os métodos Benesh e o Sutton, também conhecido como Dance Writing. Este último, posteriormente deu origem a Sign Writing, a escrita da língua de sinais.
Criado pela bailarina Valerie Sutton, Norte Americana nascida em 1951, o Dance Writing é um sistema de notação de movimentos desenvolvido para que se pudesse ler e escrever todo tipo de movimento. Na década de 70, esse sistema foi aproveitado e deu origem a Sign Writing, que consiste em um sistema gráfico de representação das línguas de sinais. O papel da escrita, na formação da memória de um grupo social é de extrema importância. Os surdos, além dos elementos culturais comuns que compartilham com os ouvintes, possuem uma cultura própria que se constrói a partir da condição de surdez. A Sign Writing é um sistema de escrita adequado às necessidades dos surdos, pois representa a fala própria desse grupo social, sua língua materna, que é viso-espacial. A escrita da língua portuguesa tem uma lógica própria da oralidade, ela é a representação de fonemas e, por isso, não faz sentido para os surdos.
Compreendendo o movimento e sua dimensão comunicativa, entende-se que é uma linguagem espaço-visual. Em ambos os contextos citados, tanto na escrita da dança quanto na escrita da Libras, a escrita do movimento contribui para a preservação de memórias culturais, já que permite que uma manifestação espaço-visual seja fixada. No caso da dança, a grafia do movimento possibilita o acesso a criações que permaneceriam no passado, caso não fossem registradas em vídeos, além de dar acesso, muitas vezes, às intenções originais do coreógrafo. Muitos estudos relacionados ao balé clássico, por exemplo, só foram possíveis através dos registros gráficos deixados por mestres de balé e coreógrafos desde o século XVIII. Sobre a escrita da língua de sinais, viu-se que a preservação da memória ganha uma importância ainda maior, já que compreende a memória de todo um sistema cultural, o que envolve a preservação e a transmissão de conhecimento, da memória e de valores culturais da comunidade surda.
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Bibliografia
CASTRO, Caroline Konzen. Métodos do Balé Clássico: história e consolidação. 1. Ed. Curitiba, PR: Editora CRV, 2015.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
STUMPF, Marianne. Língua de sinais: escrita dos surdos na Internet. Publicado em: V Congresso Iberoamericano de Informática Educativa, Viña del Mar, Chile.
TRINDADE, Ana lívia e DO VALLE, Flávia Pilla. A escrita da dança: um histórico da notação do movimento. Movimento – revista de educação física da UFRGS - Porto Alegre, v.13 n 03, p.201-223, setembro/dezembro de 2007.
GIORDANI, Liliane Ferrari. Língua Escrita: letras (im)prováveis na educação de jovens e adultos surdos. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.7, n.2, p.88-97, jun. 2006
QUADROS, Ronice Muller. Efeitos de Modalidade de Língua: as línguas de sinais. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.7, n.2, p.168-178, jun. 2006.
Sites consultados:
www.signwriting.org
http://www.dancewriting.org/about/what/index.html
http://www.seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/3579
http://www.porsinal.pt/index.php?ps=artigos&idt=artc&cat=15&idart=109
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