Eu-mulher
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
Conceição Evaristo, "Poemas da Recordação e Outros Movimentos".
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Uma breve análise
O poema "Eu-mulher" de Conceição Evaristo é uma poderosa expressão da identidade feminina, entrelaçando simbolismos que representam a vida, a maternidade e a força inerente às mulheres. Vamos analisar os principais elementos e significados presentes na obra.
O poema é composto por 14 versos livres, sem rima fixa ou métrica regular, o que contribui para a espontaneidade e a fluidez do discurso poético. A ausência de uma estrutura rígida reflete a liberdade e a complexidade da experiência feminina.
O poema inicia com imagens vívidas que remetem ao corpo feminino: "Uma gota de leite / me escorre entre os seios" e "Uma mancha de sangue / me enfeita entre as pernas". Essas metáforas evocam a maternidade e a menstruação, simbolizando a capacidade de gerar e nutrir a vida. Evaristo destaca a fisicalidade do ser mulher, conectando o corpo a funções biológicas essenciais e celebrando-as como enfeites, marcadores de uma identidade poderosa.
A "meia palavra mordida / me foge da boca" sugere uma restrição ou autocensura na expressão feminina. Ainda assim, o poema se contrapõe a essa limitação, revelando "vagos desejos" que "insinuam esperanças". Essa dualidade entre silêncio e expressão, repressão e desejo, sublinha a luta interna e externa das mulheres para se afirmarem em um mundo que frequentemente as silencia.
A metáfora dos "rios vermelhos" que "inauguram a vida" reforça a ideia do sangue como símbolo de fertilidade e criação. Evaristo celebra a mulher como a origem da vida, uma força primordial que "violento os tímpanos do mundo" mesmo "em baixa voz". Esta imagem subverte a ideia de fraqueza associada à suavidade, mostrando que a voz das mulheres, ainda que baixa, tem o poder de impactar e transformar o mundo.
Nas linhas "Antevejo. / Antecipo. / Antes-vivo", o poema explora a noção de tempo e a capacidade de antecipação e premonição das mulheres. Evaristo sugere que a experiência feminina transcende o presente, integrando passado, presente e futuro em uma continuidade existencial que é simultaneamente antecipação e vivência.
Nas estrofes finais, a autora se identifica como "fêmea-matriz", "força-motriz", "abrigo da semente" e "moto-contínuo / do mundo". Essas imagens consolidam a mulher como o núcleo de criação e energia vital, reafirmando sua importância não apenas na perpetuação da espécie, mas como a essência que sustenta e dinamiza o mundo.
"Eu-mulher" é uma celebração da identidade feminina, rica em símbolos de vida, força e resistência. Conceição Evaristo utiliza uma linguagem carregada de significados para reivindicar a centralidade da mulher na existência humana. Através de uma poética que valoriza o corpo e a experiência feminina, Conceição subverte narrativas tradicionais e oferece uma visão poderosa e afirmativa do ser mulher.
Sobre a autora
Conceição Evaristo, nascida em 1946 em Belo Horizonte, é uma das vozes mais influentes da literatura brasileira contemporânea. Linguista, escritora e intelectual, sua obra abrange romances, contos e poesias que exploram as experiências de mulheres negras no Brasil, abordando temas como racismo, opressão de gênero e resistência. Com seu conceito de "escrevivência", Conceição entrelaça vivências pessoais e coletivas, conferindo voz e visibilidade às histórias de marginalização e superação. Entre suas obras mais destacadas estão "Ponciá Vicêncio" e "Olhos d'Água", esta última vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura. A autora é amplamente reconhecida por sua contribuição para a literatura e os direitos humanos.
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